Dr. Igor Padovesi - Especialista em Obstretrícia e Ginecologia
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como fazer um bom médico

Como fazer um bom médico

(Prof. Dr. Miguel Srougi)

Texto publicado na Folha de São Paulo em 25/03/2003.
O autor é médico, pós-graduado em Urologia pela Harvard Medical School e Professor Titular de Urologia da USP.

Os iluministas, no século 18, diziam que as novas descobertas da ciência aumentariam o bem-estar e esparramariam a felicidade pela humanidade. Por extensão, acho que imaginaram que os médicos e a medicina seriam dois dos instrumentos que nos transportariam a esse estado de graça, pois poucas áreas do conhecimento experimentaram transformações tão extraordinárias.

Passaram-se quase três séculos e, se o semblante das pessoas e as notícias dos jornais valerem, creio que as coisas não foram tão bem. Nem a felicidade inundou a humanidade, nem os médicos conseguiram exterminar o sofrimento e conduzir ao ideal iluminista. Li que os médicos têm errado, são gananciosos e, às vezes, até matam.

Não tenho dúvida de que a ingenuidade iluminista não levou em conta as imperfeições da natureza humana e o seu comportamento errático, que nos impedem de gerar médicos perfeitos. Se esse sonho é inatingível, seria ao menos possível criar bons médicos?

Para responder a essa questão é importante compreender o que é um bom médico e por que nossa sociedade tem dificuldade para produzi-lo.

A medicina, exercida na sua dimensão superior, apóia-se em dois pilares, o conhecimento científico e o humanismo.

Este conceito, aparentemente óbvio, explica por que um bom médico não é aquele apenas dotado de grande ilustração técnica, já que, por mais sabido, nenhum homem dominará todos os mistérios da natureza.

Tampouco é aquele que só tem compaixão e estabelece relações humanas profundas, pois só essas qualidades podem ser insuficientes para uma ação médica efetiva.

Também não é aquele que confere toda a autonomia ao paciente, respeitando seu direito de escolha, pois o conhecimento médico é complexo para ser bem dominado pelos não-afeitos.

Não é aquele que apenas compreende o valor da família, ela que reconforta e também sofre com os ventos da incerteza, pois nem todas as famílias partilham da dor.

Menos ainda é aquele que já fez descobertas originais, pois as novas informações técnicas quase sempre representam pequenos tijolos que vão sendo acrescidos a essa edificação maior chamada ciência médica.

Na verdade, o bom médico é o que combina o maior número dessas virtudes, aquele que se coloca ao lado do paciente, como bom companheiro.

Por que está difícil fazer bons médicos? Em primeiro lugar, as escolas médicas têm acertado, mas com igual frequência têm falhado na escolha de seus alunos.

O processo atual de seleção privilegia inteligência e capacidade de memorização e está longe de definir o potencial humanístico do aluno.

Ademais, as escolas médicas elegem seus professores em função do número de linhas de seus currículos, que costumam refletir apenas conhecimentos técnicos. Com esse perfil, produzem-se professores que, com certa frequência, são incapazes de impregnar seus alunos com sentimentos humanísticos mais genuínos.

Nossos governantes também não têm cumprido a sua parte. Permitiram a proliferação exagerada de escolas médicas, aceitando a idéia falaciosa de que estavam sendo criadas mais oportunidades para os jovens. Infelizmente, um número além do razoável dessas escolas funciona de maneira deficiente, principalmente na área de ensino hospitalar.

Como resultado, uma quantidade indesejável de profissionais pouco preparados é lançada no mercado, com todas as consequências negativas previsíveis.

Os salários do pessoal da saúde também foram aviltados -a remuneração básica em janeiro último, de um médico do SUS com 18 anos de trabalho, foi de R$ 1.491.

Como exigir que esse profissional deixe de ter três ou quatro empregos ou que se mantenha atualizado, sendo que um livro técnico custa entre US$ 50 e US$ 300 e qualquer curso de aperfeiçoamento tem de ser pago pelo próprio médico?

Não custa lembrar que 95% dos médicos brasileiros são assalariados, prestam serviços a organizações privadas de assistência à saúde -que contribuem para o desalento médico, cerceando sua autonomia de ação clínica, com restrições exageradas e perigosas.

Finalmente, a sociedade e os próprios médicos também têm falhado. Arthur Smith, um autor inglês contemporâneo, escreveu que pacientes e médicos dançam juntos e um não sobrevive sem o outro.

Essa coreografia foi posta de lado quando a sociedade passou a exigir dos médicos nada menos do que a perfeição, não aceitando sequer a derrota em fatos inexoráveis, como a existência de doenças incuráveis, a decadência pelo passar dos anos ou a morte implacável.

Sociedade que assume uma postura quase sempre intolerante, sem levar em conta o ambiente circundado pela indigência, no qual atua um sem-número de médicos brasileiros.

Os médicos também se afastaram de seus parceiros. Treinados para lidar com números e estatísticas frias e tocados pelos enormes avanços da ciência, passaram a se preocupar em estender a vida, e não em expandir a existência.

Ficam deslumbrados quando descobrem que podem prolongar a sobrevida por mais cinco ou dez anos, sem se importar se esses seres ficarão inertes e desconectados diante de uma televisão ou coletando seus produtos em fraldas.

Com todas essas imperfeições, ainda é possível fazer bons médicos? Acho que sim. Michelangelo dizia que cada bloco de mármore bruto esconde uma figura esculpida, pronta para ser liberada com um pouco de trabalho e talento.

Esta é a função dos educadores médicos. Descobrir, nos blocos amorfos, os pequeninos Davis e Pietàs, dotados não apenas de brilho intelectual para corrigir, mas, principalmente, de sentimentos humanísticos puros que irão curar. E que serão moldados para assumir o papel multidimensional que os médicos ocupavam em épocas anciãs, quando eram os guardiões do corpo e da alma.

Os pequeninos que serão ensinados a misturar poderosos elixires, que aliviam o sofrimento físico com outras poções mágicas, de efeitos quase sublimes: ouvir sem julgar, expressar-se numa dimensão superior, respeitar as preferências individuais, estar ao lado continuamente e criar esperança -mesmo que sejam vislumbres de esperança.

Dos educadores médicos, e também de todos os médicos, espera-se ainda mais: que assumam o papel de modelo no caráter e no comportamento, sem o que nenhuma virtude moral pode ser ensinada.

Em um dos diálogos de Platão, Sócrates tentou explicar se virtude era transmitida por palavras ou conquistada pela prática. Como sempre, iluminou a questão, mas, nesse caso, não a respondeu de maneira definitiva. Essa resposta foi dada por Aristóteles: virtude é adquirida pela prática, e a melhor forma de incuti-la é pelo exemplo.

Acho que a nossa sociedade e nossos governantes podem produzir o exemplo. Mas, enquanto eles não se decidem, não custa nada fazermos a nossa parte.

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